Por Antonieta Moraes
Diretora-executiva do Instituto de Governança e Controle do Câncer (IGCC)
Os dados não mentem, mas podem silenciar.
O câncer é uma das principais causas de morte no Brasil, e ainda assim parte significativa da população permanece invisível nas estatísticas. A cor da pele, que deveria ser um dado epidemiológico, segue sendo um marcador de desigualdade.
O Instituto de Governança e Controle do Câncer (IGCC), por meio do projeto Invisibilidade do Câncer na População Negra (ICPN), analisou o perfil epidemiológico do câncer através dos Registros Hospitalares de Câncer (RHC) entre 2018 e 2021, a partir de um recorte específico referente ao Estado do Rio Grande do Sul. Inserido em um projeto mais amplo, o estudo contemplou dados de Porto Alegre e de cidades estratégicas do interior gaúcho, com foco em três tipos de câncer — mama, próstata e pulmão — permitindo identificar desigualdades raciais no diagnóstico, estadiamento e início do tratamento em diferentes realidades de macrorregiões de saúde.
O estudo escancara a distância entre o ideal da equidade e a realidade da assistência. Embora a população negra represente cerca de 22% dos gaúchos, apenas 6,6% dos registros oncológicos correspondem a pessoas negras. Essa discrepância denuncia não apenas subnotificação, mas a invisibilidade sistemática que marca as políticas de controle do câncer.
Entre os pacientes identificados, as iniquidades raciais são evidentes:
- Mulheres negras com câncer de mama, em estadiamento tardio (estágios III e IV – mais avançados da doença), iniciam o tratamento com mais atraso, quando comparadas às mulheres brancas;
- Homens negros com câncer de próstata são diagnosticados mais tardiamente, em estágios avançados da doença, e com início do tratamento superior ao preconizado (> 60 dias), apresentando diferença significativa entre as raças;
- Em casos de câncer de pulmão, chama atenção a grande proporção de pacientes negros e brancos (88%) que chegam em estágios avançados da doença (estadiamento tardio).
Esses achados confirmam o que a literatura já aponta, mas raramente é incorporado às políticas públicas: o racismo estrutural é um determinante da saúde, particularmente no campo da oncologia. Ele opera de forma silenciosa, na ausência de dados, na demora do diagnóstico, na diferença de acolhimento e até nas decisões clínicas.
A pesquisa do IGCC vai além de mostrar números; ela expõe um padrão de negligência institucional. O problema começa pelo básico: a raça/cor ainda é mal registrada nos sistemas hospitalares. Em um cenário onde o dado é a base da gestão, essa omissão é, em si, uma forma de exclusão. Sem visibilidade estatística, não há visibilidade política.
O projeto propõe, então, um conjunto de recomendações estratégicas que transformam a denúncia em proposta, ao indicar a necessidade de capacitar profissionais e gestores em letramento racial, garantindo que a variável raça/cor autodeclarada seja registrada corretamente nos prontuários e sistemas. Defende também a inclusão sistemática de indicadores de raça/cor nos boletins epidemiológicos e relatórios de mortalidade por câncer, de modo a incorporar a dimensão racial ao monitoramento da doença.
Além disso, recomenda investigar as causas institucionais dos atrasos no início do tratamento, especialmente nas unidades de alta complexidade do SUS, e instituir uma governança estadual para a gestão dos RHCs e dos CACONs/UNACONs, fortalecendo a integração com o Instituto Nacional de Câncer (INCA) e com os municípios.
Essas ações representam uma inflexão necessária: sair da retórica da igualdade e avançar para a prática da equidade. Reconhecer que o racismo institucional impacta o cuidado oncológico não é acusar indivíduos, mas reformar sistemas. É admitir que o SUS, embora universal, ainda opera com desigualdades estruturais que precisam ser nomeadas e enfrentadas.
O ICPN mostra que é possível fazer ciência e política pública de forma integrada, usando evidências para iluminar as áreas onde o olhar do Estado falha. Os dados são frios, mas o que eles revelam é profundamente humano: vidas negras adoecem mais tarde, são diagnosticadas mais tarde e tratadas mais tarde.
A superação dessa lógica exige um compromisso de Estado, e não apenas de gestão. A saúde pública brasileira precisa reconhecer que a cor do paciente não é um detalhe administrativo, mas um indicador de vulnerabilidade. Sem esse reconhecimento, o câncer continuará sendo uma doença com cor e o sistema, um espelho que reflete o racismo que insiste em permanecer.
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Publicado no portal Medicina S/A em 20 de novembro de 2025.





